Foto: Divulgação MP/PA |
Os corredores e salas de aulas não são frequentados pelos estudantes cearenses desde o dia 20 de março - cinco dias após as primeiras confirmações de infecção pelo novo coronavírus no estado. As aulas transmitidas pela internet surgiram como alternativa nesse período, mas dificuldades no acesso, falta de estrutura adequada e a distância da disciplina escolar podem contribuir para o aumento de um desafio antigo: o abandono escolar.
Os dados mais recentes sobre rendimento escolar disponibilizados pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep) mostram que a taxa de abandono dos estudantes nas escolas federais, estaduais e municipais somaram 5,5% no Ceará, em 2018. O número de matrículas no período foi de 1.631.877. Em 2017, esse índice era maior, com 7,1% dos alunos matriculados abandonando a escola. O total de matrículas em todas as redes em 2017 foi de 1.647.033, segundo o Inep.
Mesmo sem dados consolidados sobre a situação atual do abandono escolar, instituições que atuam, há anos, no combate a este problema crônico na educação destacam os riscos de a pandemia agravar o cenário. Entidades como a Campanha Nacional pelo Direito à Educação e o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) Ceará têm alertado sobre o assunto.
Com a pandemia do novo coronavírus e a necessidade de seguir os estudos à distância, os prejuízos são evidentes em casas com muitos moradores, pela falta de estrutura básica no espaço e de equipamentos, além da dificuldade de concentração.
"Pensei em desistir porque faltam quatro meses para o ano acabar e não tenho como recuperar esse conteúdo. Está muito complicado entender alguma coisa que os professores passam, e eu tenho acesso um pouco limitado por ter só um celular", relata o estudante Geovane Rodrigues Xavier, de 19 anos, no último ano do ensino médio.
Geovane mora no Bairro Bom Jardim e estuda em uma escola pública que frequentava pelas manhãs, antes do isolamento social ser determinado. Mesmo com os dilemas vivenciados, o estudante tinha motivação nas aulas presenciais. Com a mudança trazida pela pandemia do novo coronavírus, há vontade de continuar acompanhando para tentar o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), mas também a sensação constante de parar este ano e quem sabe retomar no próximo.
Combate à evasão
Rui Aguiar, chefe do Escritório do Unicef no Ceará, afirma que, em parceria com a União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação (Undime) e o Colegiado Nacional de Gestores Municipais de Assistência Social (Congemas), a instituição trabalha com a ferramenta Busca Ativa Escolar, desde 2017. Trata-se de plataforma gratuita para ajudar os municípios a combater, dentre outros, o abandono das escolas.
No Ceará, 176 municípios estão cadastrados na plataforma. O objetivo é resgatar estudantes que tenham deixado as escolas entre os anos de 2017,2018 e 2019.
"Esse público precisa de uma atenção especial. Eles deveriam estar recebendo pacotes de internet para continuarem os estudos, deveriam receber ligações das coordenações pedagógicas das escolas", pontua Rui.
O Ceará atingiu a meta de garantir que 20% das crianças e adolescentes que haviam deixado as escolas nestes três anos retornassem. Ao todo, 12.306 alunos foram matriculados nas 176 cidades. O cálculo não inclui dados de Fortaleza. Mas, a capital também integra o Busca Ativa Escolar.
Os desafios para acompanhar os prejuízos na educação começam já na falta de acesso aos meios digitais, como observa Rui. "É um grupo muito grande, que a gente não sabe ainda o tamanho, de crianças e adolescentes, que foi afetado pela pandemia porque a família não tem condições de ter acesso a um plano de dados de internet", conclui.
Desafio antigo
Os contextos sociais impactam diretamente sobre a continuidade dos estudantes na escola. Geovane Xavier vê no seu cotidiano as barreiras para alcançar o conhecimento adequado na casa que divide com outras cinco pessoas. A mãe, doméstica, conta ele, trabalha para garantir o sustento dos cinco filhos. Com a jornada extensa de trabalho, ele tem que passar pelos processos educacionais de modo quase solitário.
"Eu já repeti uma vez 2ª série do ensino fundamental. Mas eu nunca desisti, apesar de ter começado atrasado e ter muita dificuldade. Eu num tive muito incentivo da família para estudar, pelo fato de minha mãe estar direto trabalhando e não ter tempo para me dar uma atenção no estudo. Meus irmãos tem outras coisas para fazer. Se eu quiser estudar agora, eu estudo, se eu num quiser, tanto faz. Então, isso também é bastante difícil pra mim. Eu tenho que ter um interesse próprio", explica.
No ensino fundamental, os estudantes do 6º ao 9º ano são mais suscetíveis à evasão escolar, na percepção da presidente da Undime Ceará, Luíza Aurélia Teixeira. Isso se deve ao fato de que as crianças com baixa renda buscam atividades remuneradas para contribuir em casa.
Assim, os professores são mobilizados com a diversificação das metodologias, disponibilização de material impresso para aqueles sem acesso à internet e contato direto durante o período de aulas remotas. Esforço que alcança outro agente importante para manter os alunos na escola: a família.
"Nós temos percebido o fortalecimento do vínculo com as famílias. Tem sido uma das coisas positivas, essa aproximação com as escolas. E também o sentimento de pertencimento no processo de ensino e aprendizagem do aluno".
Rui Aguiar propõe o monitoramento dos alunos para evitar a evasão escolar. O gestor do Unicef também chama atenção para o fato de que na metodologia da Busca Ativa, a cada três meses, o coordenador pedagógico da escola tem que fazer uma observação na plataforma dizendo se o aluno está ou não matriculado. Se o estudante continua indo à escola. Mas, conta Rui, "durante esse período de pandemia, o que observamos é que essa parte não está sendo colocada - ou seja: as crianças não estão sendo monitoradas. Então, nossa grande preocupação é que não está acontecendo o monitoramento".
Impactos diferentes
A pandemia tem repercussão diferenciada a depender da etapa de ensino, aponta Rui. "No ensino médio ela se reveste de uma gravidade maior porque os adolescentes estão em um período preparatório para um exame nacional que é decisivo para as suas carreiras profissionais futuras e é um exame bastante rigoroso e que todo dia de aula perdido significa uma redução dessa capacidade de responder esse exame nacional", afirma.
Já no ensino fundamental, avalia Rui, o efeito é de médio prazo. "O que deixa de ser aprendido agora tem um prejuízo de médio prazo que é possível de se recuperar, mas vai exigir uma resposta diferente da resposta que é dada para o ensino médio", completa.
A educação infantil e a Educação de Jovens e Adultos (EJA), acrescenta, também são impactados, embora este efeito tenha menos atenção. Na etapa infantil, a repercussão é sobretudo social, enquanto no EJA é um novo desafio manter os estudantes que, anteriormente, já haviam abandonado a escola e novamente têm os estudos comprometidos.
Estrutura
Os problemas estruturais seguem como desafio ao retorno dos estudantes às aulas presenciais, como atesta o presidente do Sindicato dos Professores e Servidores da Educação Pública do Ceará (Apeoc), Reginaldo Pinheiro. "Tanto as escolas particulares quanto o poder público devem garantir todo o apoio aos profissionais da educação e os estudante para que se garante a efetividade do direito à educação nesse período em que as aulas são remotas".
Ele indica ajustes necessários para possibilitar ventilação, reformas em banheiros, diminuição da quantidade de alunos por sala e ampliação dos espaços de convivência para a retomada.
Planejamento público
Questionada se há um diagnóstico sobre a atual situação de abandono escolar no Ceará, a Secretaria Estadual da Educação (Seduc) afirmou que a verificação da frequência e da aprendizagem é feita por cada escola, considerando o Plano de Estudo Domiciliar, e que "a Seduc respeitou o período oficial de férias escolares e voltará a atualizar os dados neste mês de agosto. Portanto, ainda não é possível confirmar esse número agora".
Em relação aos índices de abandono escolar em anos anteriores, a Seduc informou que "a rede pública estadual de ensino apresentou redução histórica do abandono escolar no ensino médio em uma década. A taxa em 2007 era de 16,4%, baixando para 5,1% em 2018, o que correspondia a cerca de 16 mil alunos, naquele ano". Conforme a pasta, "os números de 2019 serão apresentados em breve".
As estratégias para tentar evitar o abandono escolar na pandemia são atividades domiciliares em que cada escola organizou as aulas para os alunos, em conjunto com seus coordenadores e professores, como detalha. As "aulas chegam aos alunos por meio de tecnologias, material impresso, rádio ou da TV Ceará (TVC) com transmissão de aulas das diversas disciplinas".
Sobre a capital, a Secretaria Municipal de Educação (SME) destaca que o último Censo Escolar registra redução de 93,8% do abandono no ensino fundamental, entre os anos de 2008 e 2018, em Fortaleza. "Sendo considerada a capital do Nordeste com maior redução na taxa. Em 2019, esse índice de abandono foi de apenas 0,4%. Em 2018, o percentual foi de 0,6% e, em 2017, a taxa de abandono foi de 1,4%", detalha.
Um sistema próprio de acompanhamento diário da frequência possibilita o acompanhamento integral dos estudantes, do Infantil I à Educação de Jovens e Adultos, conforme a SME. Os contatos são feitos por telefone com os responsáveis, ou diretamente com alunos maiores de idade, envio de comunicado escrito e visita domiciliar. Quando a comunicação não é efetiva, pode ser feito envio de ofício ao Conselho Tutelar.
Além disso, foi assinado um Termo de Cooperação Técnica com outras pastas, como Saúde e Desenvolvimento Social, para realizar a busca ativa de forma permanente. Também são disponibilizadas atividades pedagógicas para realização domiciliar. "Com esta ação, dados de acompanhamento da SME registram que cerca de 99% dos alunos do ensino fundamental da rede municipal realizaram as devolutivas das atividades, assim como executaram interações com os professores".
Por Thatiany Nascimento e Lucas Falconery, G1 CE